terça-feira, 20 de julho de 2010

Os dois lados da moeda.

(Parte IV)
Nem cara, nem coroa:
esgotaram-se as moedas.
Minha cabeça dói, como se eu tivesse tomado litros e mais litros de vinho e levado uma surra de um sujeito qualquer no meio da rua. A vertigem continua, uma ânsia de vômito e amnésia. Abro os olhos e me deparo com o quarto branco. Começo a observar melhor e vejo que estou usando uma camisa de força. Praguejo em voz baixa. Que diabos estou fazendo aqui? Levanto, ou melhor, tento levantar. Uma fraqueza nas pernas. Tento gritar, minha voz sai cansada. Devo ter bebido demais ontem e devem ter me confundido com algum louco. Não faz sentido. Por que logo eu, meu Deus? Levanto cambaleando e procuro a porta. Há apenas umas brechinhas ali, vou gritar, alguém vai me escutar, eu conto o que aconteceu... Merda, o que aconteceu? Enfim... não é preciso de uma explicação muito longa pra perceberem que não sou louco. Vou tentar.
...
- Doutor, doutor!
- Sim?
- O Marcelo está no quarto gritando, diz que foi um mal entendido, que precisa que acreditem nele. Que ele responde a todas as perguntas que quiserem e vocês verão que ele não é louco. Doutor, não sei o que fazer, ele parece estar em si agora. Seria melhor conversar com ele?
- Não o soltem! Eu irei resolver isso.
...
Branco, branco, branco, branco. Esse lugar precisava de um vermelho. Veja como está mais bonito agora, Alana! Ficou do jeito que você queria? Você sabe que nunca fui bom em decoração de casa, mas você está gostando dessa parede desse jeito? Acho tão bonita a combinação do vermelho e o branco, você também acha?
...
- Dona Vera, seu filho esteve em si por um tempo hoje à tarde. Uma enfermeira veio me comunicar e fui ao encontro dele. Ninguém o observou por questão de minutos. Quando cheguei, tivemos que sedá-lo com urgência. Marcelo havia mordido sua língua até sangrar e estava brincando de colocar o sangue nas paredes. Sinto que devamos ter uma conversa séria sobre seu filho e os traumas sofridos por ele, o comportamento dele tem sido cada vez mais estranho. Ele ficará sob vigilância 24 horas por dia agora, os ferimentos já estão sendo tratados. Ele continua sendo sedado, mas infelizmente essa é a única solução que encontramos temporariamente.
(A senhora continha o choro mais uma vez, entre soluços).
- E então?
- Marcelo foi criado apenas por mim, meu marido faleceu antes do seu nascimento. Sempre foi uma criança gentil e amorosa. No início da adolescência começou a se rebelar por motivos estranhos, chorava bastante, mas eu e minha irmã achamos que era fase e deixamos isso de lado. Ele sempre falava de uma moça, a Mariana. Desconfiávamos que fosse apaixonado por ela, mas nunca tivemos idéia de quem era a garota. Até o dia em que eles fugiram. Marcelo tinha apenas 17 anos. Pouco mais de um ano depois, o pai da menina descobriu onde eles estavam e a ligou dizendo que ia buscá-la. Marcelo conta que tinha saído para comprar pão esta tarde, e quando voltou escutou apenas o barulho do chuveiro ligado. Chamou por Mariana inúmeras vezes e ela não respondeu. Abriu a porta e deparou-se com ela deitada no chão, os olhos abertos e os pulsos cortados. Ligou para ambulância, mas já era tarde demais, Mariana estava morta. Depois disso ele voltou para cá, mas não conversava mais como antes, evitava falar nesse assunto. Alugou um apartamento aqui e ficou vivendo não sei de quê. Eu sempre perguntei ao Marcelo se ele precisava de dinheiro ou como ele conseguia se sustentar, ele nunca me respondeu. Soube por outras bocas que ele havia sido encontrado visitando o túmulo da Mariana algumas vezes, e que sempre que havia alguém da família por perto, ele era expulso. No funeral da garota, o pai dela o expulsou aos gritos e disse que nunca mais atormentasse a sua família. Desde então ele só se tornou cada vez mais fechado, mas sempre muito carinhoso e por vezes até atencioso comigo e com a tia. Agora eu recebo um telefonema avisando que meu filho está aqui e me vem esse turbilhão de notícias as quais eu não sei como reagir.
- Muito interessante, acho que se encaixa perfeitamente no contexto o qual eu queria chegar. Identificamos no seu filho uma série de transtornos psicológicos graves, entre os quais a personalidade limítrofe e a bipolaridade. Podemos usar e provar isso no tribunal. Seu filho continuará no tratamento e acredito que mais cedo ou mais tarde poderá voltar ao convívio social.
...
Passaram-se anos antes que eu pudesse me acostumar com a idéia de ter um filho louco. Um tipo de maníaco depressivo que eu só conhecia por filmes e que não achei que pudesse existir na vida real. Hoje me encontro velha, cansada e cada vez mais triste de saber que nada posso fazer pelo meu Marcelo. Ele não sabe quem é, ele não sabe quem eu sou. Não se lembra de nada do seu passado como Marcelo e acredita fielmente ser o Victor. A cada visita eu volto com um sentimento de pena e desamparo maior. O que me conforta é que agora eu tenho direito a visitá-lo, e mesmo que eu já esteja quase acreditando que o meu Marcelo se perdeu para sempre e agora é o Victor que vive ali, eu gosto de ter essa vivência com ele. Sei que é insano, mas sinto que o compreendo e me sinto culpada por isso. Se eu tivesse dado a atenção necessária ao meu filho, talvez eu tivesse evitado quatro mortes. Mariana. Alana. Victor. E do próprio Marcelo. Pois mesmo ele estando com o corpo ali e com os órgãos funcionando, não é mais ele que vive.
...
- Minha querida Vera, por tanto te esperei. Como andas?
- Bem, e você, Marcelo?
- Eu também estou muito bem. Mas ei, por que esse rostinho triste, hein? O que aconteceu, meu bem? Posso te ajudar? Olha, sei que a senhora é meio louca e ainda acha que eu sou esse tal de Marcelo, mas eu tenho um carinho grande por ti. Sabe que todo mundo é um pouco louco lá no fundo, né?
- Não estou triste, também gosto de você. Eu trouxe uma coisa pra você, um presente.
- Ah, sério? Que docinho, gente. Não precisava, e o que seria?
- Trouxe uma pílula que quando você tomar, te trará Alana de volta.
- Nossa! Eu não sei o que dizer. Quando a gente passa o tempo enclausurado nesse inferno, não sabemos da modernidade que acontece pelo mundo afora. Eu queria muito que a senhora me desse isso, e rápido! Eu te contei a coitadinha caiu da escada nesta quinta-feira, não contei? Quando cheguei no meu quarto ela estava lá, caída. Não sei de que escada foi, porque não tem escadas lá. Mas ela me disse que tinha sido uma queda e Alana é sempre muito correta no que diz, nunca mentiu para mim em anos de casamento. Sou muito feliz com ela, sabe Dona Vera? Mas desde essa queda não no vemos, acho que ela está se tratando no hospital. A senhora garante que se eu tomar isso ela melhora e volta logo?
- Garanto. Mas você tem que me prometer uma coisa.
- Até duas.
- Que só vai tomar quando chegar no seu quarto e que vai escrever algo justificando isso antes, ok? Sem mencionar meu nome.
- Claro, querida! Tem que ser no local do ocorrido, é? Faço isso sim. Tem lápis e papel lá, eu escrevo direitinho e não cito seu nome, pode deixar.
- Coloque dentro da sua roupa e não deixe ninguém ver. Tenho que ir agora, depois nos vemos. Te amo.
- Certo, meu bem. Também.
...
Peguei um giz de cera e um papel, sabe que aqui não nos deixam usar canetas afiadas? Acham que nós faríamos alguma coisa com elas. Babacas. Escrevi num papel:
Hoje a minha mãe trouxe remédios para que eu pudesse ir. Eu sei o que está acontecendo, sei que ela só fez isso porque realmente me ama. Sei que agora vou encontrar Mariana e sei que não fiz mal algum ao tirar a vida de Alana e Victor, aqueles imbecis que contaram ao pai do meu amor onde nós estávamos. Nós confiamos neles e eles nos traíram. Quero dedicar a eles a culpa da minha morte, um troco pelo peso da morte deles que eu carrego. Vida por vida. Amor por amor. Não culpem minha mãe por isso, agradeçam pela ajuda e diga que eu nunca a esqueci. Com carinho, Marcelo.
Antes de ingerir a pílula que me traria Alana de volta, eu reli a carta. Não entendi ao certo do que se falava, pareceu-me uma brincadeira de mau gosto. Com as unhas, cortei um pouco da minha pele e desenhei um coração sob meu lençol branco. Dentro do coração coloquei um A e um V. De um tom de vermelho tão bonito quanto as rosas que eu deixei sob seu caixão, num lençol tão branco quanto as flores que acompanhavam as rosas vermelhas.
Tomei o remédio de uma vez, deitei-me. E esperei dar a hora de buscar Alana para nós irmos ao café.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Os dois lados da moeda.

(Parte III)
O Terceiro Lado:
Porque a moeda também pode cair de pé.

Eu não sei aonde estou. Não sei como vim parar aqui. É uma sala branca, tão branca quanto a pele de Alana e quanto as flores brancas que eu deixei em cima do caixão dela. Olho para os lados, estou sozinho. Não sei bem o que é o teto ou o que é o chão, qual meu lado esquerdo ou direito. Uma vertigem estranha. Não consigo me mexer e tenho uma leve impressão que estou dopado. Que horas são? E de que dia, Meu Deus? Ninguém a quem recorrer. Fecho os olhos e lembro dela, de mim, de nós, de como nos completávamos e de toda a falta que eu sinto. Minto. Lembro do sangue, dos cortes, dos gritos, das lágrimas, do desespero... da solidão.
(...)
- Eu quero saber o que aconteceu, doutor! E quero saber agora.
- Dona Vera, não adianta conversarmos agora, há muito o que se resolver ainda. Mantenha a calma, por favor.
- Calma? Como eu vou manter calma? Meu único filho foi acusado de duplo assassinato, é internado num hospital de psiquiatria e o senhor me manda ter calma? Francamente!
(...)
Eu posso ouvir. Você também ouve? Os passos de Alana se aproximando da porta e as chaves balançando, acho que ela as está retirando da bolsa. A maçaneta gira e de repente não há ninguém. Mas eu podia jurar que ouvi Alana chegar em casa. “– Amor?” eu ainda tento, não obtenho resposta. O único barulho que posso ouvir é o da água caindo no chão, gotas... agora paro e vejo que não posso ouvir nada além da minha própria respiração.
(...)
- Pelo amor de Deus, alguém me explique o que está acontecendo!
- Senhora, a polícia vai conversar contigo. Não se apavore, arrume um bom advogado e mantenha a paciência, vai dar certo.
- Meu filho não é assassino. Por favor, o que aconteceu? Tudo o que eu quero saber se resume a isso, por favor!
(...)
Surpresa! Feliz aniversário, amor. Você quer ver o presente que eu te trouxe? Quer? Uma faca mais afiada, para você conseguir morrer mais cedo da próxima.
Acordei de um sobressalto, mais um pesadelo. Uma tontura, preciso deitar de novo. Alana? Alana? Aonde eu estou? Infernos! Eu morri? Volto a dormir.
(...)
- Senhora, peço primeiramente que não interrompa nada do que eu te falar. Vou contar exatamente o que aconteceu. E depois, se por eventualidade tiveres alguma dúvida, nós revemos o ponto, ok?
(Dona Vera apenas acena a cabeça com um sinal de positividade.)
- Pois bem, na madrugada de sexta-feira, recebemos um telefonema avisando que ouviam-se gritos no apartamento 507 do edifício Ipanema na z...
- Por favor, me poupe de detalhes idiotas e vamos ao que interessa.
- Então, fomos até o local checar o que estava acontecendo. Ao chegarmos lá nos deparamos com o seu filho, Marcelo e dois corpos jogados pela casa.
- Prossiga.
- Uma mulher, Alana Amorim; e um homem, Victor de Melo Rezende. A mulher se encontrava nua, repleta de cortes; cortes estes, que levaram à sua morte. Acredita-se que o que tenha a levado à morte tenha sido um no abdômen que perfurou algun...
- Peço mais uma vez que me poupe de detalhes sórdidos.
- Continuo... a mulher foi morta com vários cortes, sendo alguns desses letais à sua sobrevivência. O rapaz, por sua vez, foi morto a pancadas na cabeça.
- Hum... (a mulher continha sua impaciência e nervosismo)
(...)
Amooooor, as crianças estão chorando. Vai ver o que elas têm, vai. Eu estou assistindo ao jogo, não queria perder. Por favor, linda, vai por mim. Novamente acordo subitamente e percebo que ainda estou neste quarto. Será que eu estou sonhando?
(...)
- Indiscutivelmente os dois foram assassinados. Na casa só havia eles três. As digitais do seu filho estão na faca e no vaso que foram usados para matar as vítimas. O barulho dos gritos anteriormente havia sido abafado por um aparelho de som ligado num volume ensurdecedor.
(Dona Vera sentia seus olhos encherem de lágrimas)
- Marcelo estava ao pé da porta, sentado e chorando, quando chegamos. Segurava a faca em uma das mãos e tinha a outra junto ao coração. Olhava fixamente alguma coisa no chão e pareceu não reparar nossa entrada. Ele está sendo acusado de duplo homicídio, peço que entre em contato com um advogado e esteja no fórum municipal amanhã às 9. Sinto pela frieza, mas minha função como delegado é unicamente esta. Peço também que converse com o doutor Glauco acerca dos problemas mentais do seu filho e até onde isto pode ter contribuído. Vemos-nos amanhã, até mais.
(...)
Eu estou sonhando, sonhando, sonhando, sonhando, sonhando... Alana, me acorda! Não estou gostando desse sonho. A graça já acabou, amor. Pode aparecer. Alaaaana, você tá se escondendo de mim? Cadê você, linda? Amor, deixa de birra, aparece! Vem cá que eu tenho uma coisa pra te dar, vem.
(...)
- Receio que a senhora já tenha conversado com o delegado e já esteja a par do que aconteceu.
- Sim.
- Seu filho sofre de esquizofrenia nervosa, Dona Vera. O que agravou o caso foi, que além disso, ele possui um transtorno bipolar fortíssimo. Quando o trouxeram para cá, ele não parava de falar que era o Victor e que tinha tentado salvar a Alana, porque ela era doente e tinha se suicidado.
- Continue, por favor.
- Ele está sofrendo de despersonalização e não sabe ao certo quem é. Em momentos diz ser a própria Alana, em outros diz ser o Victor. Discorre fielmente sobre tudo que ele acha que aconteceu, conta a versão das duas partes. Diz que a moça se suicidou depois do banho e que ele chegou para salvá-la mas já era tarde demais. Depois diz ser a própria moça e descreve tudo que aconteceu na hora em que supostamente cometeu suicídio.
- Ele está louco, doutor?
- Sim, minha querida. Está. Infelizmente seu problema não foi descoberto e tratado na hora certa e agora talvez seja tarde demais. Marcelo está demonstrando um comportamento violento e, por mais que não esteja consciente disso, ele oferece perigo às outras pessoas. Sinto que devamos expor esses detalhes. Alguns profissionais que acompanharam a chegada dele aqui podem depor.
- Meu filho não mat...
- Peço que não considere o assassino dessas pessoas como seu filho. Ele não é mais o seu Marcelo, Dona Vera. Aquele Marcelo não existe mais. Ele deve ser tratado e preso até melhorar e cumprir sua pena, não tente fugir disso, aconselho. Será melhor pra vocês.
- Não me deixe ainda mais confusa do que já estou.
- Receio que não seja a minha intenção.

domingo, 18 de julho de 2010

Os dois lados da moeda.

(Parte II)
Coroa
Ontem foi o funeral de Alana e hoje eu acordei como se faltasse uma parte de mim. Tento evitar pensar em tudo que aconteceu nos últimos dois dias, mas não consigo.
Ainda me culpo. Se eu tivesse chegado meia hora antes, talvez ela agora estivesse aqui, sorrindo para mim e dizendo que eu não a deixasse. Alana não era normal, eu sabia disso e ela também. Qualquer um que a olhasse saberia, mas ninguém seria capaz de imaginar o quanto que aquela diferença fazia dela violenta e quem sabe até perigosa. Eu tentei ajudá-la. Mas ela não se permitiu ajudar e sempre foi tão mais forte que eu.
Ela era borderline. Um transtorno de personalidade grave que por muito tempo foi confundido com bipolaridade. Mas ia além. Alana tinha, além de depressão e transtorno bipolar, depersonalização e transtorno de personalidade limítrofe. Sentia uma necessidade absurda de possuir algo que a protegesse e que esse algo não a deixasse nunca. Acho que o objeto escolhido por ela fui eu, e eu a deixei. Mesmo que por minutos, eu a deixei.
Naquela quinta-feira eu a tinha ligado mais cedo para que nós saíssemos à noite. Ela parecia normal, estava saindo o trabalho, disse. Eu já tinha saído do meu e resolvi passar no psiquiatra da Alana para que nós pudéssemos conversar. Ele disse que havia terminado as análises, que os exames dela tinham chegado e que precisava conversar comigo. Eu fui.
“O quadro dela está se agravando, Victor. Ela precisa de você.”
“Posso conversar com ela sobre isso?”
“Deve.”
O médico me disse que ela estava sujeita a surtos de pânico e que era um alvo fácil a cometer um suicídio não intencional, e foi o que aconteceu. Alana nunca teve a intenção de morrer, por mais que de uma forma esquisita e um tanto quanto única: ela amava a vida.
Sempre reclamava muito de solidão, do vazio. Queria que eu ficasse com ela o tempo inteiro, mas eu não podia. Eu tinha obrigações, deveres, ela também. Mas ela não ligava. Achava que tudo já estava tão ruim de um modo que não podia piorar.
Eu passei o dia inteiro preocupado, comecei a telefoná-la, mas ela não me atendia. Então preferi esperar o horário que havíamos combinado de sair. Eu havia perguntado se ela queria que eu passasse para buscá-la, mas ela disse que não precisava, que seria sem necessidade e que a gente se encontrava no café. Ela não foi.
Tudo que o médico me disse não me saia da cabeça, comecei a ficar tão nervoso. Ligava freneticamente para o seu celular e ela não me atendia. Depois de um tempo, não mais agüentei a ansiedade e sua ausência, fui até seu apartamento.
Ao chegar a seu andar já pude ouvir um som ligado altíssimo numa música qualquer de uma melodia triste. Nada incomum, pensei. A não ser o volume exagerado. Tentei tirar tudo que passava em minha mente e acreditar que ela estarei bem ali e que talvez só não escutasse o telefone chamar.
Chamei muitas vezes antes que ela viesse abrir a porta. Eu já estava desesperado e pensei seriamente em quebrar a porta. Tive medo de machucá-la. Quando ela abriu para mim, eu vi que talvez já fosse tarde demais. Senti meu sangue fugir do corpo quando vi Alana, minha amiga, meu amor, parte de mim daquela forma. Eu a amava. Eu ainda a amo. Mesmo depois de morta. Um sentimento de culpa tão forte invadiu meu corpo, deixaria meu sangue secar para ter chegado à sua casa mais cedo.
Alana sorria muito, mas tinha o rosto tomado por lágrimas. O médico me avisou que esse tipo de crises violentas seriam comuns e, como eu já sabia, ela se mutilava sempre que se sentia impura por algum motivo. Geralmente eram cortes pequenos e discretos, não dessa vez.
Nunca sairá da minha mente aquele corpo branco, naquele apartamento branco, coberto de sangue. Completamente ensangüentado. Soa ambíguo, mas assim é para ser. Tanto o corpo quanto o apartamento. Seus cabelos negros caídos sobre o colo branco, vermelho. Não sei mais ao certo dizer se seu colo era branco ou vermelho.
Naquele momento senti uma vontade imensa de protegê-la, de livrá-la de tudo aquilo que ela criou, de tudo que se tornou. Alana era sensível, tanto que foi capaz de fazer o que fez contra si. Não havia muito o que fazer.
Eu a abracei, ao passo em que ela caiu em meus braços, sem forças. Tive medo de machucá-la ainda mais, quis dizer que a amava. Gritei. Gritei. Chorei. Gritei de novo. Implorei que ela não me deixasse, mas foi em vão. Na madrugada de ontem, sexta-feira, na maca de um hospital, após perder uma quantidade absurda de sangue, pouco mais das duas horas, Alana me deixou. E dessa vez foi pra sempre.
Vai ser difícil aprender a conviver com a dor. Tornei-me escravo da culpa de sua morte para sempre. Minha menina estranha e perfeita dentro dos seus defeitos, agora não mais é minha. Eu perdi Alana. Eu me perdi. Eu perdi minha metade que saiu às ruas e acabou entrando na avenida errada. Perdi o amor da minha vida. E joguei no lixo toda e qualquer oportunidade que eu tinha de ser feliz.
Pus em cima do seu caixão rosas vermelhas e brancas. Tão vermelhas quanto o sangue que eu vi sobre o corpo nu e branco antes de sua morte. E tão brancas quanto sua pele hoje, ali, sem vida, sozinha, naquele cemitério.

Um prólogo.

"...E Clarisse está trancada no banheiro
E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete
Deitada no canto, seus tornozelos sangram
E a dor é menor do que parece
Quando ela se corta ela se esquece
Que é impossível ter da vida calma e força
Viver em dor, o que ninguém entende
Tentar ser forte a todo e cada amanhecer...Como se toda essa dor fosse diferente, ou inexistente
Nada existe pra mim, não tente
Você não sabe e não entende
E quando os antidepressivos e os calmantes não fazem mais efeito
Clarisse sabe que a loucura está presente
E sente a essência estranha do que é a morte
Mas esse vazio ela conhece muito bem
De quando em quando é um novo tratamento
Mas o mundo continua sempre o mesmo..."

(Clarisse - Legião Urbana)

sábado, 17 de julho de 2010

Os dois lados da moeda.

(Parte I)
Cara
A água caia sobre meu corpo e juntamente a elas as minhas lágrimas. Desde que eu cheguei em casa estou no banho, não sei mais há quanto tempo. Talvez umas duas horas, talvez mais. Eu havia passado o dia inteiro evitando contato com as pessoas, tinha evitado olhar no rosto dos outros por um motivo que eu não sei ao certo. Precisava de solidão. Sempre precisei. E agora, mais que nunca, eu vi que ficar só já tinha se tornado uma necessidade, uma sede que não passa. As pessoas me acham estranha, eu sei disso. Meus pensamentos e talvez até o que eu escreva parecem ambíguos, e reconheço que isso tem um motivo. Eu sei que as pessoas me acham estranha ao passo que sei que realmente sou estranha. Meus hábitos são um tanto incomuns, confesso.
Queria encontrar alguém que me compreendesse e que me completasse de um modo que eu não me sentisse sufocada. Mas as pessoas têm um costume chato de sempre quererem se adentrar à personalidade das outras, uma vontade de entender o que as outras passam e sentem. Isso me enoja. Eu sou chata, também reconheço isso. E por ser chata, fechada, solitária e (quem sabe) talvez até um pouco paranóica, fico cada vez mais isolada e trancada dentro do monstro que eu mesma criei.
Liberto-me dos meus devaneios e desabafos por um tempo e abro os olhos. O banheiro é todo branco, como uma sala de tratamento, penso. Em meio a alguns pensamentos estranhos e gozados, me vem algo à mente: “como é bom morar sozinha.” Morando sozinha eu posso passar o tempo que quiser no meu banho sem incomodar ninguém. É estranho, confesso. Mas coisas desse tipo fazem de mim uma mulher mais feliz. Se é que eu sou uma mulher, ou se é que eu sou feliz.
Sinto-me bem em banheiros. Passam-me uma sensação forte de limpeza e de libertação. Gosto de água, gosto de branco, gosto desse cheiro de sabonete e shampoo que o ar aqui dentro tem e gosto de me sentir livre para chorar como me sinto aqui. Ninguém nunca vai saber que eu chorei, meus olhos dificilmente ficaram vermelhos e muito provavelmente nem meu rosto, sempre em contato com a água.
Evitei ao máximo mas não pude controlar, veio-me agora um desejo incontrolável de ver o Victor. Não sei o que está acontecendo entre a gente, mas sinto que ele está se distanciando de mim e isso me dói. Um dos poucos que não me sufoca e que eu amo. Sim, ainda tenho sentimentos. Por mais que isso também me doa, eu o amo. Não, não somos namorados. Não, não somos só amigos. Não sei explicar o que há entre a gente, às vezes penso que o Victor é um pedaço de mim que criou vida própria e saiu pelas ruas. Feliz ou infelizmente, eu acabei o encontrando e ele faz com que eu me sinta completa. Não quero que ele se perca de mim, não quero permitir que me esqueça. Mas eu sou uma pessoa tão difícil de se entender, ou melhor, de se aceitar. Ele se zanga comigo, faz birra, mas volta. Espero que volte.
Desligo o chuveiro, ainda apreciando as últimas gotas de água que agora caem sobre meu rosto. Lembro que esqueci a toalha e lembro um dos outros bons detalhes de morar sozinho: se você esqueceu a toalha, não há problema em sair do banheiro, ainda nua, para buscá-la. Passo minhas dezenas de óleos corporais tão calmamente como se estivesse vivendo tudo em câmera lenta. E realmente é assim que me sinto enquanto ainda penso no Victor.
Saio pela casa, molho todo o chão e penso que vai dar trabalho para secar depois. Tenho a impressão que estou atrasada para alguma coisa, olho no celular que horas são e lembro que deveria ir ao café com o Victor. Lembro vagamente que tínhamos combinado algo e que talvez por isso eu tenha demorado tanto. Ainda temo o nosso reencontro, há alguns dias não nos vemos e é sempre tão comum vê-lo. É como se já tivéssemos nos perdido sem que isso tenha realmente acontecido. Coloco o celular sobre a mesinha de cabeceira e busco a toalha. Uma toalha tão branca quanto os azulejos do banheiro e tão limpa e pura quanto o meu sentimento por Victor.
Ainda antes de me secar, como que para demorar mais e adiar essa ansiedade estranha que sinto, eu ligo o som. Christina Perri pergunta quem eu penso que sou repetidas vezes e eu sorrio para mim mesma. Deixo a toalha cair no chão e vou até a cozinha tomar um copo de água. Mas, com toda a pureza daquela água, eu vejo a solidão daquela faca de cabo branco que estava ao lado do copo e a pego.
É uma comparação cômica de se fazer, mas eu me acho parecida com uma faca. Psicologicamente falando. Posso ser inofensiva e posso matar alguém, inclusive a mim mesma, inclusive ao Victor.
Sento no chão da sala ainda nua e ainda com os cabelos pingando água. Observo a faca por um momento longo que me parece curto. Faço o primeiro corte na minha coxa esquerda. Um comprimento aproximado de dez centímetros. Não dói. Só sinto um calor forte no rosto ainda molhado. Penso em me levantar e molhar o rosto, mas prefiro continuar naquele “ritual” que está me parecendo tão interessante. Um fio de sangue se junta à água e escorre até alcançar o chão. Minhas pernas estão esticadas sobre a cerâmica branca daquela sala e minhas costas encostadas naquelas paredes de um bege tão claro, mas que eu prefiro pensar que também é branco.
Corto-me pela segunda vez, agora na minha coxa direita. Penso que ficará bem escondido e que se, por algum acaso, alguém ver aquilo será o Victor. Eu não tenho vergonha do Victor e ele já viu minhas coxas inúmeras vezes, já que é a única pessoa que me visita e eu tenho um hábito também exótico de andar de calcinha pela casa, como criança.
Mas eis que não consigo mais me controlar e agora corto um pouco mais abaixo do primeiro corte. E corto de novo, e de novo, e de novo, e de novo e inúmeras vezes eu me corto. Minhas pernas já estão cortadas do início da coxa até o fim do joelho. O sangue escorre pelo chão e eu lembro do Victor mais uma vez. Lembro também do trabalho que aquilo vai dar para limpar e depois prefiro não limpar, é tão lindo o contraste que há entre o sangue e aquele chão tão branco. Coloco vagarosamente a mão sobre um dos cortes e, com o sangue, sujo um pouco também da parede. Sorri para mim mesma de novo.
Agora parei um pouco e lembrei que a música já está repetindo há um bom tempo. Mas não me preocupo com isso. Ao levantar a cabeça, vejo que a luz do celular está acesa e muito provavelmente ele está chamando. Não ouvi antes por causa da música. Levanto-me. As pernas doem um pouco. Na verdade não é exatamente dor, eu me sinto tão bem. Mas ardem, uma sensação estranha. Ainda com a mão suja de sangue pego o celular, Victor está ligando e posso ver que já existem outras chamadas não atendidas ali. Fico com o celular em mãos até a chamada cair mais uma vez. Ele deixa uma mensagem de voz e eu penso em ouvir depois. Aproveito que já estou de pé e aumento o volume do som.
Sento-me novamente no chão e começo a sorrir. Penso no Victor e se ele ainda estaria me esperando no café. Deixa estar, depois eu me desculpo. Pego a faca que estava sobre o chão e novamente me corto. Desta vez na cintura, bem na cintura. Os cortes agora são mais longos, corto minha barriga em vários pontos, um pouco nos pulsos e (por quê não?) os seios.
A campainha está tocando. Deixo chamar. Penso em perguntar quem é, e, com sinceridade, não sei ao certo se perguntei ou só pensei em perguntar. Pego um pouco do sangue que agora está em minha barriga e passo no meu rosto. Acho que coloco um pouco na boca. Não lembro. Os pensamentos agora parecem um tanto que desordenados. Christina continua dizendo que aprendeu a sobreviver apenas “metade viva” e eu lembro do Victor.
- “Alana! Alana!”
O Victor está lá fora. Como posso explicá-lo esta bagunça? É melhor eu atender, não quero que minha outra metade viva vá embora. Tento levantar, mas dessa vez dói de verdade, não é mais só uma ardência. Estou um pouco fraca e tenho sede. Levanto-me lentamente e vou até a porta.
- “Meus Deus, Alana! O que você fez, Alana? Amor, você enlouqueceu?”
Não estou com paciência para falar agora. Penso em dizer que não se preocupe, que estou bem, mas, quase sem perceber, me deixo cair em seus braços. Eis que me lembro que ainda não me vesti e sinto meu rosto corar um pouco. Lembro também que devo o estar sujando com meu sangue, mas ele está de branco, então talvez penso que seja melhor assim. Penso em dizê-lo também para não chorar, começo a notar que o Victor chora.
“Meu amor! Meu amor! Por que você fez isso?”
Ele repete entre soluços e eu penso em dizer que não sou acostumada com ele me tratar tão bem assim, mas me calo. Victor grita algumas coisas que eu não consigo entender. Sinto que ele treme e só depois percebo que eu também. Victor senta-se no chão onde eu estava um pouco antes, ele me deita e põe minha cabeça em seu colo. Seus olhos estão tão vermelhos quanto eu. Sinto uma pontada de culpa mais logo passa. Queria falar, dizer ao Victor o quanto eu o amo, mas ainda me calo. Sinto-me cansada. Sinto-me amada. E, mais do que nunca, sinto-me limpa e pura.
Victor continua comigo em seu colo enquanto vejo que há um telefone em seu ouvido, acho que está chamando a polícia, mas para quê? Será que entrou algum ladrão aqui? Penso mais uma vez em dizê-lo que não se preocupe e que estou bem, mas talvez eu não esteja, percebo. Uma vontade absurda de beijar seus lábios e de acalmá-lo.
“Por que tão nervos...”
“psiiu, calma, não fala nada, calma, linda, vou te salvar, calma”
Ele ainda chora. Queria consolá-lo. Será que algo aconteceu a ele e ele não está querendo desabafar? Penso em dizer que estou aqui para ouvi-lo, mas tenho vontade de dormir e uma fraqueza. Eu o amo. Eu preciso do Victor, percebo. Ele é a única pessoa do mundo a qual eu preciso, tento dizer. Calo mais uma vez.
Ele meche em meu cabelo enquanto chora e a partir de agora eu sinto que não estou mais tão consciente do que está acontecendo. Uma misantropia estranha. Uma névoa. Não sei o que é isso. Amor, eu penso. Victor continua fazendo uma espécie de cafuné em meus cabelos enquanto chora e me beija. Subitamente percebo que há mais alguém conosco, acho que era para a ambulância que ele ligava e que esta chegou, Victor sorri. Tento sorrir também.
As pessoas estão todas de branco, uma enfermeira qualquer põe a mão no meu pescoço. Faz uma cara estranha e diz algo ao Victor. A partir de agora não consigo mais manter os olhos abertos, nem ouvir nada do que se passa no ambiente. Só sinto. Sinto uma paz repentina, um aperto no meu peito, borboletas no estômago e sinto amor. Amor. Amor. Amor. Amor. Meu pelo Victor, dele por mim. Agora sinto a morte. E agora não sinto mais nada.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Boa tarde, pessoas.

Eis que venho comunicar-lhes que estou de volta. Passei uns dias fora de si... ops, fora da cidade e só agora tive como dar sinal de vida. Mais do que nunca, reparei que não nasci para ter uma vida social ativa e me encontro extremamente cansada. Tenho algumas histórias em mente, nada lá que valha a pena ser lido, mas que (mesmo assim) colocarei no papel quando estiver com a paz interna necessária para tal. Enfim, em breve volto por aqui e jogo algumas frases que tenham mais sentido para vocês, ok? Promessa. A todos uma boa semana e até mais.