sábado, 26 de maio de 2012

E todos os destinos irão se encontrar

Luísa estava jogada na cama, chovia lá fora, tinha uma garrafa de vinho na mesinha de cabeceira, a voz de Chico vindo de alguma parte do quarto e aquele mesmo rapaz com seu corpo entrelaçado ao dela. Se alguém a pedisse para definir felicidade, ela definiria como aquele momento. Não conseguia entender o que havia nele que a fazia sentir-se daquela maneira, querendo a noite inteira para fazer samba e amor, sem sequer se importar com o sono na manhã seguinte. Nem com qualquer outra coisa. E Luísa fugia de uma resposta, por saber o risco que a situação em que mais gostava de estar a punha. Era insensato, era impulsivo, era importante. Era ele. A certeza de não saber o que estava fazendo a deixava desconfortável, mas o desconforto era indiscutivelmente menor que a sensação de estar em casa que aquele outro lhe trazia.  Então temia. Temia pelo fim da madrugada, não por preguiça, talvez por ser um pouco covarde... Temia pela ida dele. E dela. Pelo chamado da realidade, pelo mundo que existia fora do cobertor de lã que agora os cobria tão aconchegantemente. Ainda assim, aquela impressão de que era certo, mesmo que por um momento, a deixava satisfeita e livre de qualquer receio. Luísa não queria sair dali. Sentindo a respiração branda do outro em sua nuca, milhões de pensamentos irracionais lhe inundavam a mente. Queria se desprender. Estava farta de obrigações que ocupavam seu tempo, mas não sua alma. Queria abrir mão de tudo. Deixar de lado tudo que vinha lhe causando dissabores. Queria ser dele. Queria compreender em que situação se enquadrava, primordialmente. O que será que seria? O que viveria nas suas ideias? Buscava um sentido, por mínimo que fosse, que a desse a coragem necessária para fazer aquela noite virar dia sem medo do amanhecer. Já a dizia Chico que nem todos os avisos iriam evitar, já era prova disso, além de tudo. Não tinha governo, não tinha vergonha, não tinha juízo. Tinha vontade, apreço, carinho, memórias bonitas. E, por hora, isso parecia bastar. 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Fantasiando

Sabe o que eu acho engraçado? A minha mania de me sentir dona do que eu não posso possuir. Eu nunca vou ter escrito aquele trecho que descreveu minha vida e me fez chorar de emoção nas dez primeiras vezes que li, nem nunca vou ser a compositora da música que eu definiria como “a que me definiu”. Não dá para eu ter pintado aquele quadro que me fez ficar parada analisando cada detalhe, tampouco ter vivido a história que deu origem àquele filme encantador que assisti noutro dia. Mas eu me sinto como se pudesse. E nessa ânsia de poder sem poder, eu sou mais uma hippie nos anos 60 e sou outra jornalista solitária e complicada caminhando pela Times Square. Volto à realidade e por alguns minutos eu consigo ser a estudante de direito sem muitas aventuras mirabolantes na bagagem. Então percebo que pode ser mais divertido, viro na cama e sou a própria amante de Sartre, quando viro de volta já é hora de me aprontar pra mudar o mundo. E mudo. O meu mundo muda. E essa minha mania de mudança chega a cansar justamente por isso, pela constância na própria inconstância, como se na briga pra me transformar um pouquinho a cada dia, eu tenha caído numa metamorfose sem fim. Mas está tudo bem, as coisas estão lindas e eu tenho sorrido tanto. Quero continuar sorrindo com essa mesma vontade. Mas também quero algo novo. Às vezes quero algo hoje e amanhã não o quero mais, aquilo perde o sentido. Vê? Perde o sentido. Quero tudo, o mundo inteiro, você comigo... Quero querer. E quero. Quero entender. Só quero. Tento à toa, mas não importa. Quero continuar desse jeito meio torto e sem jeito, e quero até mudar continuando igualzinha. No fim das contas, eu acho que gosto mesmo de ser assim.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Art never comes from happiness

Eu sempre repetia sucessivas vezes que aquilo era psicose e drama enquanto Luísa continuava a me olhar com os seus olhos céticos de desprezo. Confesso que aquele senso claro de superioridade me tirava do sério. Mesmo sendo deveras calmo, tinha vontade de sair e gritar, com medo de que eu acabasse por perder o controle e quebrasse tudo que aparecesse na minha frente. Era desesperador discutir com Luísa, posto que ela se achava sempre certa e ocupada o bastante para ouvir minhas desculpas. Ou para me responder, fosse o que fosse. Dava de ombros e saia de perto, eu não era digno de suas palavras. Nas mesas de botequim aprendi que seria o sonho de muitos homens, digo, uma mulher que não discute, que apenas ignora e sai, contudo, na realidade é o inferno. Não um, mas o próprio inferno. Recolhida na sua capa de indiferença, Luísa calava e fingia não dar a mínima, mas dava. E eu pagaria por fosse qual fosse meu erro, tivesse eu errado ou não, porque sua raiva vinha feito veneno lentamente introduzido às minhas veias. E me doía vê-la tão conhecedora de leis e direitos, não me conceder a ampla defesa. Era em vão. Nos dias calmos, eu tentava falar sobre isso, mas a resposta era clara: não haveria resposta alguma, só silêncio. Com o tempo eu fui me adaptando, não por escolha, mas por não conseguir avistar outra saída, se é que essa adaptação pode ser tida por saída. E me sentia distante, como que deixando um pouquinho dela escapar entre os dedos a cada nova discordância. Confesso uma coisa: eu sou difícil de lidar, sei que sou. Ela também o é, não sei qual dos dois é mais. Gosto das coisas claras e de esclarecer tudo. Fujo do abstrato e subjetivo, porque embora cada um saiba de si, eu gosto de saber do nós. E não ligo que a mulher que eu tenha escolhido para viver e amar seja diferente, eu só me importo que ela finja não se importar só para me diminuir. (...)  Luísa havia calado, sempre foi fechada, mas agora ia além. Antes ela costumava me dizer que tinha dois grandes anseios na vida, e que seria uma mulher realizada se alcançasse qualquer um deles: ser imensamente feliz ou ser artista. Sim, artista, no sentido amplo. Atriz, compositora, escritora, pintora, qualquer coisa, contanto que fosse artista. E de tanto se apegar à literatura chegou ao consenso que só podia escolher uma das opções: ou seria artista ou imensamente feliz. Já a avisou Bukowski que a arte nunca vem da felicidade, então só poderia escolher um dos dois. Optou por tentar ser feliz e levar uma vida normal. Embora não toque mais no assunto, sinto que ela sente que fracassou. Luísa não se contentaria com tão pouco. Um emprego que ia bem, alguém que gostasse dela. Nada que outra metade do mundo fosse incapaz de possuir. E, para ela, a razoável facilidade de acesso à suposta felicidade que ela havia adquirido, acabou por tirar o encanto da sua vontade de ser feliz. Via-se saturada de viver sem ter vivido. Sem entrega. Sem mudanças. Só do jeito metódico que sempre preferiu fazer as coisas. Coisas tão suas que não aceitava críticas nem sugestões, nem minhas. Então eu me vi tentando suprir ausências, tentando me fazer necessário, sendo a luz de abajur que iluminaria toda a cidade do meu amor. Sem sucesso. O que Luísa queria estava aquém da minha possibilidade de conseguir trazer para lhe dar. Havia desistido da mediocridade do "ser feliz". Ao mesmo tempo que não havia nenhum motivo que a possibilitasse  ser uma grande artista. Começou a aspirar por uma grande catástrofe que a pusesse dentro do seleto grupo dos que conseguiram sem conseguir. Pode até me falar que é ousadia falar assim dos grandes, mas não considero que ser derrotado seja uma vitória. Ser derrotado e tirar proveito disso não é uma vitória, mas uma válvula de escape tão incapaz de trazer a realização quanto a própria "pseudo-felicidade". Era isso que eu não queria que ela sentisse, este trauma. Eu tentei preservar Luísa, livrá-la da maior das decepções, que era justamente a de se decepcionar quando se decepcionasse e visse a pequenez daquilo tudo. A arte não vem da felicidade, nem tampouco da tristeza: a arte vem do vazio, da ausência, da sensação de quem já viu de tudo e não se surpreende mais com nada, a arte é o nível mais doloroso que um ser humano pode alcançar. A arte é tudo que eu queria que a minha mulher não quisesse e era tudo que ela mais queria. E aí fomos vivendo, daquele jeito meio torto, meio errado, ela com a esperança que a grande derrota viria, eu com a esperança que ela mudasse. Quando dei por mim, era tarde. A minha Luísa havia se esvaziado por completo, mas não havia se tornado artista. Na minha ânsia de fazer as coisas darem certo para ela e na frustração de ver tudo desandar, algo inusitado aconteceu: nenhum dos dois alcançou o que queria, mas ambos vimos o outro alcançar. Agora eu estou com o rascunho do meu primeiro livro em mãos, Luísa está do meu lado, sorrindo, cansada e satisfeita, na porta de uma editora. Não sei se vou conseguir ser artista, ela diz que já sou, que ser um grande escritor não é vender milhões de cópias, e sim escrever uma grande história. Eu escrevi a nossa. Dolorosa, sem grandes aventuras, com algumas catástrofes, que não nos rendeu nada do que esperávamos, mas que fez de nós realizados e completos na nossa própria incompletude.