sexta-feira, 29 de junho de 2012

Coração na mão, como o refrão de um bolero

A dor-de-cabeça ela não sabia se vinha de fora ou de dentro. Ou se eram duas, distintas, elevadas, equivalentes. Não sabe quando tempo passou na cama, esperando que tivesse tudo sido um pesadelo e que,  a qualquer hora, ela iria notar que nada do que lembrava tinha acontecido. Não foi um sonho. A dor realmente estava ali. Havia botado a perder. Pulsava dentro dela como nunca havia pulsado antes. Cada vez que sentia seu coração bater era como se ele repetisse em alto tom: fracassei. A cada batida, a vontade de apagar os últimos dias vinha à mente. Não adiantava. Sabia que não havia muito a se fazer, ou até nada. E esta incapacidade de agir a tirava do sério. De repente, era tudo diferente, mas não menos importante. Pelo contrário, talvez só agora notasse que era ainda mais importante do que anteriormente supunha. E, mais uma vez de repente, sentia-se a caricatura dos amores difíceis, onde por mais que se tente fazer as coisas da forma mais correta, uma atitude estúpida estragaria tudo. Desta vez, ela havia sido estúpida. Por algum motivo injustificável, que ela tentava acreditar que existisse, mas não conseguia visualizar. Devia haver alguma coisa que a fizesse fugir de si o suficiente pra agir tão mediocremente. Não, não havia. Era difícil admitir, todavia, não haveria como haver. Nada justificava. Só doía. E confirmava: há diversas formas de morrer, de longe a pior delas é o arrependimento. Castiga. Amargura. Corrói. Reduz alguém ao nível de nada. Porém, "nada" implica em neutralidade, o que havia ali era descrédito, decepção, erro. Erro é pior que indiferença. É uma sensação completa, não vazia... Pela primeira vez na vida, ela preferia se sentir vazia. Também pela primeira vez, a dor da culpa era tão forte que ela não seria capaz de esvaziar. No outro dia, quem sabe, as coisas amanheceriam mais claras, ela saberia responder algumas questões internas e tantas outras externas. Provaria a outrem o que tanto sabia, e as coisas ganhariam toda a cor que ela havia enxergado naquele arco-íris bonito e breve, que Luísa tanto sonhava em ver de novo.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Alte liebe rostet nicht

Entra, senta aqui, vamos conversar. Não desiste de mim. Desculpa, acho que fui meio rápida demais na frase que antecedeu esta, deixa eu tentar recomeçar. Não quero deixar você assustado. Vem, senta aqui do meu lado, vamos tentar esclarecer tudo isso, toca na minha mão, vamos tentar deixar as coisas claras como esquecemos de deixar mais cedo. Eu me importo contigo, eu me importo com a gente. Eu queria fazer isso da forma mais saudável, mais bonita, eu queria fazer isso dar certo. Eu queria deixar de lado tudo que me amedrontou no começo, esquecer mesmo, não solta minha mão, não olha pra baixo, olha no meu olho. Tenta me entender, tenta me respeitar. Vamos analisar juntos se nossa relação é mesmo bilateral, cansei de notar que nós vivíamos em tempos diferentes. Às vezes eu não estava pra você, e de repente eu estava, mas você não estava mais. E doía, sabe? Não quero que isso se repita. Não quero ter que repetir isso outra vez, já falei tantas.  Fico tão preocupada, com tanto medo de não saber expressar o que quero. Sei que essa nossa conversa vai ser decisiva, porque olha, essa é tua última chance. Desculpa, não quero parecer estar te pressionando, embora até eu agora ache que eu esteja, enfim... É que realmente não sei lidar com tudo isso, sou meio esquisita, você sabe. Os tempos são difíceis ainda, mas se a gente se gosta, por que não tentar? Nós merecemos outra chance, não merecemos? Eu quero te dar outra oportunidade de fazer isso da maneira decente. Quero me dar outra oportunidade de sorrir ao ver teu sorriso de menino e teus olhos meio perdidos, meio vagos, meio de quem não sabe pra onde olhar, mas sabe que não deve olhar pra mim naquela hora, porque tá inseguro e não quer me passar insegurança. E eu quero que nós dois nos sintamos seguros. Quero que nós dois deixemos todas as incertezas que temos acerca um do outro de lado agora, ou então que a gente se deixe de vez. Sei que estar com alguém não é algo que precise de nenhum contrato, mas eu tenho algumas condições, alguns termos que gostaria de esclarecer logo, e pra que seja verdadeiro de verdade (perdoe-me a redundância, fez-se necessária), eu apreciaria muito saber se tu estás de acordo. Quando eu falo em estar de acordo, não entenda como um contrato de adesão, estes termos não são os que eu ponho à frente de cada relacionamento meu, são restritos, são seus, são tão pertinentes a nós que chego a me questionar por qual razão não os bolei antes. Lá venho eu, assustando-te novamente. Desculpa. Desculpa também por eu não conseguir parar de me desculpar, é que tenho tanta mágoa, tenho ainda tanto receio, mas  deixa. Eu vou deixar também. É frescura minha, sou muito mulherzinha. Embora não pareça. Sabe também que acho que não deixei as coisas aparecerem da forma que deveria... Parecia tão errado, não tinha como eu evitar de me sentir insegura. Sei que segurança é fundamental pra você. Embora seja tão instável quanto eu, só não tenha a mesma ousadia que eu tenho em assumir isso. Não foi uma afronta, não quis te atacar. Pelo contrário, embora eu me expresse demasiadamente áspera, por vezes, tudo que menos quero é chegar atirando pedras. Não tenho só o teto de vidro, sou quase uma estufa, difícil vai ser encontrar um lugar em mim que não quebre. Prometo tentar me blindar, ou ao menos ser o mais resistente possível pra que isso dê certo. Queria simplificar tudo, não queria tecer um monólogo. Vem cá, segura a minha mão, por favor, eu preciso desse contato físico pra ter a certeza de que você ainda tá aqui. Seria tão mais simples jogar os termos que falei anteriormente na tua cara e esperar pra ouvir os teus e assinar embaixo, sem discutir, sem modificar o combinado. Sei que não é fácil, nunca foi. Eu fico tentando ser paciente agora, tenho medo que minha ansiedade inquestionável tenho sido peça integrante e a base dos erros anteriores. Não vou resumir nada, é. Vou falar minuciosamente que te gosto, sem me preocupar se você vai acreditar ou não. É tudo que tenho, minha palavra, lembra? Eu preciso de você. Pra contar que as coisas vão bem, pra assistir aquele filme deitada sobre tuas costas e pra acordar de conchinha na manhã seguinte. Preciso de você pra acreditar, junto de mim, que só foram tempos difíceis, mas que as coisas podem dar certo. Preciso de você pra me fazer acreditar que nem todo homem é canalha. Preciso de sanidade mental, preciso de discernimento pra conseguir lidar com tudo isso antes de ficar louca, se é que já não estou. Preciso que você perdoe meus erros para que possamos começar isso da forma correta, preciso conseguir te perdoar também, mas eu sei que consigo. Por que a gente tem que se preocupar um com o outro em segredo? Preciso que você faça por onde merecer minha entrega. Eu planejo tanto, você nem sabe. Desculpa, não quero te encher com isso, sei que a essa altura do campeonato você já deve tá cansado de me ouvir e com uma vontade danada de apoiar a cabeça nesse sofá e tirar um cochilo antes de eu terminar, mas me ouve, só dessa vez. Ouço discos inteiros pensando na gente, penso o quanto seria bom ter o direito de nos identificar em algumas letras, penso também o quanto seria bom poder ouvir algumas delas contigo. Penso até se você repararia no mesmo que eu, gostaria do mesmo trecho, preferiria a melodia à voz, ou vice-versa. Penso em ti, sabe? Penso no que poderia ser. E quando a gente dá esses nossos surtos de se fechar e parece que já nem lembro de você, só parece. Porque eu fico, cá com meus botões, lembrando até com uma vitrine que vejo na rua, vendo teu rosto em cada gota d'água dessa chuva. Uma vontade enorme de caber inteira no teu abraço. Sinto falta de cada coisa que a gente não viveu. Nem precisava que essa nossa história fosse eterna, só precisava que ela não enferrujasse com a chuva em que eu te vejo, nem com a maresia... Porque, olha, eu queria tanto deitar na areia da praia contigo e contar as estrelas e viajar juntinho e que você me esquentasse quando eu estivesse com frio e continuasse me esquentando mesmo quando já estivesse quente. Eu queria tanta coisa, poxa. Mas agora eu só queria que a gente se acertasse. Juro pra ti, fico feliz se a gente só se acertar. Em definitivo. Ou para um não, ou para um sim. Deixar dessas pendências. Isso mata uma parte de mim que eu gosto, fico incomodada em perder justo esta parte. E te gosto, também. Tanto quanto esta parte. Será que essa parte é você ou será que essa parte é sua? Se for pensar bem, prezando pela sinceridade e clareza - estão nos termos, depois dá uma lida - na nossa relação, acho que é melhor eu abrir os olhos e me conformar que essa parte não é sua. Eu queria que fosse. Queria que você quisesse que fosse. Vê do que eu falo? Você me desconcerta tanto que nem sei organizar meus pensamentos de uma forma satisfatória e me volta aquela dúvida: "Deus do céu, será que este homem entende o que quero falar e em que situações eu me meto por gostar tanto dele?". E tenho tantas outras pendências, tantas outras dúvidas que deixei que descessem garganta abaixo sem me permitir discernir o sabor que tinham quando me passaram à boca. Um medo de que o que é castelo de pedra pra mim seja castelo de areia pra você. Não se preocupa, eu sempre tive esse medo, não é inédito. O único fato inédito é eu ter tido a coragem de te ligar pra tu vires aqui e eu te falar cara à cara tudo que eu estou te falando. Você nunca esteve na minha vida como eu queria que você tivesse estado, é tão confuso. Há tanto tempo eu penso nisso. Há tanto tempo eu penso em nós. Por isso eu fico assustada e por isso continuo achando que só te assusto. Não sei se cabe falar mais nada, não sei se algo do que falei tem sentido. Nem sei se tem sentido eu chegar e vomitar esse monte de informação de uma vez, por mais que no fim das contas tudo que eu tenha dito se resuma em tão poucas palavras e em tanto querer, tanto importar. Continuo em corda bamba. Você continua segurando minha mão. Não me deixe cair. Puxe-me. Seja pra perto de ti ou pra perto do chão. Deixa eu torcer em silêncio, ou nem tanto, pra que seja pro teu lado. Abrace-me uma ou duas vezes antes de me deixar ir embora. É isso. 

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Desses de cinema

Amor que é amor é cheio de clichês. É cheio de mensagens na madrugada, de piadas bobas, de declarações esperadas e inesperadas, de noites de sono perdidas pra ver o outro dormir e de sorrisos. Sorrisos, especialmente. No fim do beijo, no meio da frase, naquela lembrança... Tem cheiro e jeito doces. Tem abraço apertado e saudade mais apertada ainda. Amor que é amor é assim, cheio de "mim" e cheio de "você". Completo. Leal. Apaixonadamente careta e absurdamente apaixonante. Amor que é amor tem seu rosto a cada ponto final que eu escrevo e tem sempre uma vontade de escrever mais, só pra te ver de novo. Só pra te imaginar sorrindo. Só pra sorrir também. Deixa a gente meio idiota, mas sem ser. Os que não se apaixonam é que não sabem o quão maravilhoso e racional pode ser isso tudo. Assumir riscos não é ser inconsequente, é ser corajoso, é encarar o incerto de frente. É parar durante o dia com a consciência de que cada incerteza se esvairá no momento que aquela voz pronunciar seu nome, daquele jeito único. É ser único, pra si e pra alguém. É fazer sentido. É razão e emoção, tudo ao mesmo tempo. É suave e bonito. Com dias nublados, também... mas com café e edredom pra compensar a falta de sol. Amor que é amor é seguro, saudável, gostoso. Assim, tipo esse meu, embrião, que não vê a hora de nascer.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Keep balanced

About choices

"Choose Life. Choose a job. Choose a career. Choose a family. Choose a fucking big television, choose washing machines, cars, compact disc players and electrical tin openers. Choose good health, low cholesterol, and dental insurance. Choose fixed interest mortage repayments. Choose a starter home. Choose your friends. Choose leisurewear and matching luggage. Choose a three-piece suite on hire purchase in a range of fucking fabrics. Choose DIY and wondering who the fuck you are on a Sunday morning. Choose sitting on that couch watching mind-numbing, spirit-crushing game shows, stuffing fucking junk food into your mouth. Choose rotting away at the end of it all, pishing your last in a miserable home, nothing more than an embarrassment to the selfish, fucked up brats you spawned to replace yourself.
Choose your future. 
Choose life. 
But why would I want to do a thing like that? I chose not to choose life: I chose something else. And the reasons? There are no reasons. Who needs reasons when you've got heroin?"

sexta-feira, 15 de junho de 2012

So many for us

Luísa estava abraçada com sua almofadinha de coração, deitada em posição fetal, com o rosto vermelho escarlate e completamente molhado de lágrimas. Fingir que ia tudo bem arrancava diariamente uma parte dela. O sangue não estancava. Não havia nenhuma anestesia que diminuísse nela a sensação de estar se destruindo e furtando de si própria a chance de fazer as coisas da forma certa. O risco era tão alto que não sabia se tinha condições de arcar com as consequências. Então, no fim do dia, ela se jogava no sofá com a sensação de estar adiando sua vida. Sentia os olhos marejarem, buscava o pouco de auto-controle que ainda lhe restava, levantava e ia preparar um café para tomar enquanto trocava freneticamente os canais da tv. Como ela queria conseguir tomar uma decisão. Sair da inércia. E, naquele dia, tudo que Luísa conseguiu foi ficar pior que nos demais. Ao abrir a porta e se deparar com aquele corredor vazio, sentiu seu corpo gelar, como se o sangue fugisse, e de repente só o seu rosto estivesse quente. Jogou o chaveiro em cima da mesa da sala e ao entrar no quarto se atirou sobre aquela almofada, como se a apertando forte, ela conseguisse que as coisas dentro dela não se dispersassem ainda mais. Apertando forte, talvez tudo fosse continuar imóvel ali. Mas perdia um pouco de si a cada fração de segundo que não tomava uma decisão. E como queria adormecer e acordar com tudo diferente. Adormecer, pela primeira vez, sem passar horas ponderando como ela vai sofrer menos. Se vale o risco. Como vai ser se não valer o risco. Voltaria ela à estaca zero?  Uma grande perda não nos levava à estaca zero, mas sim nos leva a buscar enlouquecidamente algum tipo de estabilidade. E ela tinha alguma estabilidade agora, teoricamente. Estava tudo tão bagunçado e dolorido e talvez mais instável do que nunca. Porém, estava aparentemente calmo. E essa aparente calmaria a servia de consolo, vez ou outra. Tinha o controle de algo. Ter o controle não significava muita coisa. Talvez, se ela perdesse o controle, as coisas se acertassem. Mas se não? Se não ela estaria mais perdida e impotente que nunca. Como Luísa queria ser corajosa pra enfrentar as coisas cara à cara. Como Luísa queria fugir dos significados nas entrelinhas. E sonhava... tanto. Acordava doendo mais. Existiam tantos mundos preparados para tudo que ela queria viver, embora todos imperfeitos, poderia ser ideal. Ainda assim, poderia. Enquanto Luísa continuasse sendo uma covarde fugindo de tudo que queria por medo, aquela agonia persistiria, era sua única certeza. Luísa precisava soltar aquela almofada, levantar da cama, lavar aquele rosto, tomar seu café enquanto fazia uma ligação marcando um outro café. Precisava apenas disso: de dez minutos, coragem e uma conversa franca, olho no olho.  Até lá, ela se escondia ainda mais no seu casulo, torcia para que o mundo se refizesse e as coisas aparecessem cada uma no seu devido lugar. Era utopia, mas era tudo que tinha pra hoje. 

terça-feira, 12 de junho de 2012

O amor é um cão dos diabos

- outra cama, outras orelhas, outros brincos, outras bocas,  
outros chinelos, outros vestidos...
cores, portas, números de telefone.

Você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.
Para um homem, você deveria ser mais sensato.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Estar perto não é físico

Confesso que me sinto demasiadamente assustada com a missão que me foi dada. Assustada porque, clichês à parte, escrever a alguém que nos importe é sempre uma tarefa complicada, que exige da gente um cuidado maior. E como falar de alguém que importe e esquecer de uma amiga que, mesmo à distância, sempre dá um jeitinho de se fazer presente? Sempre dá um jeitinho de mostrar que está ali, sempre à espreita, sempre cuidando... Uma amiga que me enche o peito de tanta saudade, mas que eu sempre guardo a certeza que por mais tempo que passemos sem nos ver, ainda será a mesma amizade, intacta, como se sequer tivéssemos passado um dia longe uma da outra. Uma amiga que me entende, que me respeita, que puxa minha orelha quando eu preciso e que, por ser deveras ligada às emoções, acaba por me ensinar a agir como alguém normal agiria. Menos cérebro e mais coração. Uma verdadeira professora nesse aspecto e em tantos outros. Digna da minha inveja por possuir um carisma e humildade ímpares. O tipo ideal para a definição “pessoa de um coração grande”. Sabe, ratinha, eu aprendi e aprendo muito contigo. Tu tens um jeito de enxergar a vida tão bonito, tão puro, que faz de você indiscutivelmente merecedora da minha admiração e apreço. O valor que você tem para mim é imensurável. Fico feliz por saber da solidez da nossa amizade e pela certeza de que, a qualquer hora, a qualquer dia, eu sempre terei você, seja pra compartilhar uma tristeza ou algo de bom que tenha me acontecido. Torço demais para que tudo dê certo pra ti. Saiba que, mesmo de longe, eu faço questão de acompanhar tua vida e teu sucesso, porque o teu sucesso também se faz meu. Cuide-se, sempre! Um beijo da rata de laboratório branquela que mais te ama no mundo inteiro. Sua amizade é uma das coisas mais valiosas que eu tenho na minha vida, nunca esqueça disso. Morro de orgulho de ti.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Karamázovi

Plural de Karamázov. Seria, simbolicamente, aquele que com seu comportamento desacertado dá os rumos do próprio destino.


Que mocinha peculiar era aquela. Sempre com seus passos rápidos de quem está com pressa, mesmo sem estar. Sempre com os dois braços trazendo fortemente o livro pra perto de si como se ele fosse fugir caso ela não o abraçasse daquela maneira. Era nova ali. O que a deixava ainda mais desconfortável e aflorava ainda mais a sua indiscutível timidez. Os primeiros dias foram os mais difíceis, como sempre são. Havia conseguido um emprego de meio expediente em uma loja, que daria para conciliar com as aulas que assistia durante a noite. Estudava história. Não sabia exatamente o que queria ser, nem tampouco por qual razão resolveu estudar história. Mas gostava, à sua maneira. Saia do trabalho sempre às 14h. E, sempre às 14:30, passava num banco próximo à sua casa. Na maioria das vezes para checar o movimento bancário da sua conta, realmente, outras só pra não sair da rotina. Sentava, abaixava um pouco seus óculos, abria o livro e ficava lendo, quietinha, até as 15:30. Não lembrava de alguma vez ter descumprido este trajeto diário. Ao chegar em casa, punha suas coisas em ordem, revisava alguma matéria para a aula, ia à universidade e deitava assim que voltava. Mas não dormia. A menina gostava de imaginar, era uma sonhadora por excelência. Criava milhões de galáxias e paraísos enquanto repousava sua cabeça naquele travesseiro. Morava sozinha, mas sempre dava "bom dia" ao acordar. E assim a vida seguia... Da forma que sempre fora, metodicamente planejada, e ainda com a esperança de algo novo que viria e deixaria as coisas mais bonitas e mais parecidas com aquele filme francês que a mocinha gostava. Sentia saudades da família, vez ou outra, nada gritante. Precisava de um espaço que só agora possuia. Mesmo complicado, aquele primeiro passo à independência era fundamental para que ela alcançasse o que almejava. Com o passar do tempo, começou a enxergar naquela nova cidade o seu lar. Já não era mais uma estranha, embora não tivesse amigos e todos os contatos que estabelecera com outros seres vivos tenham sido superficiais. Comprou um peixe beta para lhe fazer companhia. Era uma segunda-feira quando a menina vinha abraçada a "Mulheres", de Bukowski. Naquele dia foi diferente. Com sua cabeça baixa e seus passos rápidos, eis que misteriosamente a menina percebe um rapaz passar por ela. Seria só mais um no meio de tantos, caso este outro também não tivesse suas próprias peculiaridades. Tinha um jeito calmo que contrastava com sua aparência. Se o tivesse visto em alguma fotografia, a moça o imaginaria sorrindo, agitado e com olhos firmes, e não com aquele olhar vago e aquela boca pequena quase escondida pela barba. Ainda não fora isso que chamara sua atenção em especial, mas um caderno personalizado que o moço trazia consigo: capa preta, dividido no máximo em cinco matérias e escrito em letras grandes "Se Deus não existe, tudo é permitido?". Dostoiévski, Os irmãos Karamazov. Não havia duas semanas que a moça tinha lido o livro de qual a citação havia sido retirada. Checou no relógio, 15:12. Levantou e foi embora, envergonhada, completamente sem jeito, morrendo de medo de se fazer notada, pela primeira vez não cumpria com seus horários e uma adrenalina imensurável lhe tomava as veias. À noite, refletira se já o tinha visto alguma vez antes e tivera deixado passar despercebido, mas não, era a primeira vez, ela lembraria. O que, em partes, a desmotivava, já que não saberia onde lhe encontrar. Na terça-feira, lutando para se fazer aparentemente normal, a menina foi ao banco na esperança de reencontrá-lo. Ele estava lá mais uma vez. Desta, trazia consigo um exemplar de Ariel, da Sylvia Plath. Foi pega de surpresa quando viu o rapaz ultrapassar a área de clientes e tomar o lugar de um outro atendente. Ele trabalhava ali. Superado o choque, a menina continuava indo ao banco todos os dias, o rapaz sempre estava lá, inclusive foi atendida por ele algumas vezes. Seus olhares nunca se entrecruzaram, ele nunca ouviu da boca dela nada além de um "obrigada", mas para a moça havia uma amizade ali. Ela o tinha incluído na sua rotina. Ao chegar em casa, martirizava-se por nunca fazer as coisas diferentes. Ora, eles se viam todos os dias e os dois sempre carregavam livros consigo, livro é uma coisa tão íntima, tão pessoal... e os dois tinham uma preferência literária tão semelhante. O rapaz também carregava junto ao  livro aquele caderno, que ela viu na primeira vez. Então, decidiu-se: ela iria chegar abraçada a Os Irmãos Karamazov, colocaria "inocentemente" à vista dele, então ele iria falar que também gostava de Dostoiévski e os dois iam se tornar amigos de verdade e ela teria alguém pra falar como foi o dia e pra perguntar se queria tomar uma cerveja com ela no sábado à noite... Ah, como a menina sonhava. Inclusive, levou dentro da bolsa aquele exemplar inúmeras vezes, mas nunca teve coragem de botar seu plano em prática. Até que um dia, um mês e doze dias depois daquele primeiro, ela finalmente estava determinada a deixar claro que também gostou do livro, que também gostava de literatura e que os dois deveriam ser amigos. E ela foi. Colocou o livro na bancada. Ele viu. Pareceu não notar. Cumpriu seu trabalho, ela o agradeceu e foi embora. Um mês e doze dias de espera acabaram de ir pelo ralo. 
- Moça?
O sangue lhe fugiu às veias. Mas não era o garoto do caderno que a chamava, era o próximo a ser atendido na fila. Ele levantou o livro da menina, que ela havia esquecido em cima da bancada. Era muito branco, alto e tinha um sorriso tímido no rosto. Ficou deveras envergonhada, mas foi buscar.
- É um bom livro.
- Oi?
- É um bom livro. Gosto de literatura russa, não pude deixar de reparar. Sou Vitor.
- Marina.
A menina sorriu sem jeito, as coisas finalmente começaram a mudar.